domingo, 2 de novembro de 2014

A significação humana nas obras de Nestor Lampros




“O vento nada pode aprender da cidade”.
(provérbio Árabe)


            Nestor Lampros parece olhar e não enxergar a aparência do supérfluo. Seu olhar é penetrante e atinge a essência, a vida, a alma... Creio que isso me levou a prestar a atenção em sua produção artística. Uma pessoa aparentemente calma e educada, com um certo ar de humildade, o que hoje é uma verdadeira riqueza, considerando que entre os artistas, geralmente, o orgulho e a exibição falem mais alto.
            Nestor é cativante ao se envolver no mundo artístico. Aliás, o seu mundo artístico está em simbiose constante com o mundo real. Para ele, fantasia e realidade comungam do mesmo bojo: o da vida.
            O seu olhar, aparentemente distante, é penetrante ao sentir o mundo. Reflete o seu dia a dia por meio das artes plásticas, da poesia e do humor, esboçado em charges, caricaturas, quadrinhos e em ilustrações diversas. Para ele, o metier das artes vem de longa data por ter em seu seio familiar a presença de pais com sensibilidades artísticas, Lukas Lampros e Hissae Isejima. Seu pai, Lukas, recebeu homenagem por sua carreira como artista, mostrando suas pinturas no 16º Encontro de Artes Plásticas de Atibaia. Um importante e merecido reconhecimento.       
            Nestor, desde criança se habituou a conviver com tintas e materiais artísticos, sendo incentivado pelos pais a desenhar desde tenra idade. Atualmente, aos trinta e sete anos, já tem uma carreira consolidada e merecedora de destaque. Estudou com Edson Antonio Gonçalves, Sara Beltz, Paulo Monteiro, Cândida e Júlio Torres, entre outros, e freqüentou o ateliê de gravura do Instituto de Arte e Cultura Garatuja. Fez pós-graduação em Arte-Educação na FAAT - Faculdades de Atibaia e é formado em Letras na FESB – Fundação de Ensino Superior de Bragança Paulista. Tem constante interesse em se manter informado e atualizado. Fez capa de livro para a Prefeitura de Atibaia, ilustrações para a revista Cult, para o jornal Atibaia Hoje e para outras publicações.
            Como artista plástico, participou de várias mostras, recebeu prêmios, como a “Menção Honrosa” no XVI Encontro de Artes Plásticas de Atibaia, em 2007, e a “Menção Honrosa” no Concurso “Yolando Malosi”, também em Atibaia. Suas obras circularam por vários locais expositivos, inclusive constaram do cenário da novela do SBT “Jamais te esquecerei”, exibida em 2003.
            Enfim, o seu currículo ilustra várias participações, como o projeto L.A. Atibaia Art Exchange, exposto na Galeria do Consulado Brasileiro, em Los Angeles, Estados Unidos, em 2008, e a mostra “Cinco vozes do Brasil”, realizada em Gênova, Itália, em 2005. Nota-se, sobretudo, a sua evidente ligação com a cidade onde reside, Atibaia.
            Não poderia ser diferente. Nestor, antes de tudo, é um artista que reflete à sua volta e o seu dia a dia soa como fonte substancial para a sua criatividade. Seus estudos fortalecem o seu conhecimento, mas o seu cotidiano reforça a sua alma e é por meio desta última que veicula a essência de suas obras.
            Poderíamos, numa análise apressada, situar a sua produção com um enorme parentesco com Picasso, principalmente na série de estudos para Guernica, perceber a presença onírica de Chagall, num clima de sonhos e até mesmo as abstrações de Kandinsky, cujo foco é o de transmitir a espiritualidade das “coisas”. Claro que a somatória de conhecimento exerce de algum modo um magnífico alicerce para apoiar novas criações. Foi assim com Portinari, que soube muito bem tirar proveito de sua viagem ao exterior e conhecer o cubismo e outras vertentes artísticas que culminariam em somatória para compor a sua obra autenticamente brasileira.
            No caso da produção de Nestor, o sua ideário conduz à rapidez do instante, captando o momento fugaz. Sua mente é sonhadora e poética, ferve com a realidade. Faço valer o pensamento de Gaston Bachelard para as obras de Nestor, quando diz: “Um sonhador, unido tão fisicamente à vida das coisas, dramatiza o insignificante. Para tal sonhador de coisa, tudo tem uma significação humana, em sua minuciosa fantasia” ¹.
            Nestor é o artista da fantasia, para ele nada é insignificante, tudo pertence à esfera da vida e tem o seu próprio valor e necessidade. Por isso, o artista consegue num simples retrato, digo simples no sentido de montagem de cena, ou seja, o artista consegue mostrar, ao criar uma “cabeça”, muito mais do que mencionar detalhes e outros artefatos desnecessários. A representação de um rosto diz muito sobre a ansiedade, a frustração e a esperança. Transmitir o instante é a sua poderosa arma criativa. Mas não se trata apenas de registrar um breve momento. Suas obras são instantes, que emanam o passado e o presente ao mesmo tempo. Elas ligam o tempo.
            Para esboçar um breve ensaio sobre a produção artística de Nestor Lampros, escolhi algumas obras que, ao meu ver, traduzem sobremaneira o seu contexto de criação como um todo.
            O artista é versátil ao lidar com os materias. Pinta com tinta óleo e acrílica sobre tela, madeira, papelão, faz colagens e desenha sobre materiais diversos. Para ele, o importante é que sua obra possa nascer naquele exato momento, sem delongas, projetos e estudos.
            Antes mesmo de começar a expor, fato que aconteceu a partir de 1990, o artista já mostrava o seu modo estilístico em seus trabalhos. Na obra “Estigmanizante”, de 1989, a expressão da figura é salientada por uma espécie de musculatura, ao tempo que volteados coloridos que a formam, tecem caminhos e valorizam o estado de devaneio que ela transmite. Assim como em “Meu Pai”, obra feita no mesmo ano que a mencionada, mostra esse volteado, como um modo de o artista evidenciar a estruturação física do retratado.
            É importante observar que o que digo aqui como “volteado” é uma espécie de grafismo que vai ser acentuada com mais presença em sua produção posterior, sendo que vários de seus trabalhos chegam ao abstracionismo, graças a sua facilidade de compor plasticamente com tipos variados de faixas, que ora são feitas com pinceladas largas, ora são finas com traçados próprios de um exímio desenhista. Registra essa habilidade mesmo quando pinta.
            A partir dos anos iniciais de 2000, Nestor desenvolve o seu traçado como contínuos arabescos, usando geralmente o preto. Muitas vezes estes sobrepõem outros feitos em branco, que sintonizam com o fundo colorido.
            O seu traçado é uma evolução conquistada, sobretudo, pela feitura de colagens. Não é simples, embora espontâneo, tem uma sequência que se enraiza de modo multidirecional, conforme a estrutura das formas contidas no plano de fundo.
            O interesse pela escrita e arabescos árabes fortificou o seu traçado, feito, geralmente, com linhas contínuas, sinuosas, como se prolongassem criando ramificações. O contato com o amigo e artista Vinicius Berton e a empatia com a obra do artista goiano Siron Franco aguçaram a sua apreciação para obras “viscerais”, cujas fontes criativas são de cunho imaginário, permeiando um mundo mágico, repleto de bichos, seres e paisagens inusitadas.
            Os arabescos de Nestor sintonizam com formas que aludem ao primitivo e aos desenhos das crianças. Nesse sentido, pode-se perceber que o artista paira suas criações no âmbito do encanto “pueril”. Encanto este que concebe uma criação em harmonia com a descontração do "mundo" primitivo e da autenticidade da criança.
            Nestor admira a obra de Karel Appel. Este artista holandês morreu em 2006, participou da fundação do Grupo Experimental, em 1948, unindo-o com o Grupo Cobra no mesmo ano. Desenvolveu uma arte espontânea em oposição à repressão dos anos da Segunda Guerra Mundial. Seu modo de se expressar artisticamente era uma tentativa de resgatar os elementos tradicionais da cultura primitiva e a identidade cultural de seu país, que estava sofrendo uma mudança avassaladora diante de uma crescente industrialização. Pintava "instintivamente" como uma criança, utilizando cores vivas e traços grossos. Valorizava o imediatismo em oposição ao excesso de teoria e de métodos presentes na arte européia da época, contrariando a tendência mais racionalista da arte abstrata, que tinha o artista Piet Mondrian como um de seus expoentes ².
            Nestor parece aliar, com características próprias, o seu gosto pelos arabescos árabes e pela obras de artistas como as de Appel, que mantém a “soltura” primordial do traço e da pincelada.
            Os traçados estão mais evidentes em sua série de desenhos feita em 2003, cujas distorções despojadas, compostas por um entrosamento entre o claro e o escuro, mostram rostos que se consubstanciam com a amargura.
            O seu estilo é inconfundível. O seu traçado participa da pintura, constratando com áreas pintadas e enaltecendo a figuração. O artista constrói um peculiar momento pictórico, como nos mostram as obras “Casal I” e “Casal II”, ambas de 2004 e outras do mesmo ano.
            Na “O gorgeio do pássaro”, de 2005, o menino travesso está com o ouvido ávido à escuta do canto do pássaro, que por sua vez, gorjeia e tenta transmitir um suposto segredo. Esta obra traduz a ingenuidade e naturalidade de criação que Nestor consegue trazer à luz, fazendo valer os contornos escuros em sintonia com um colorido vivo, sendo valorizado com a sobreposição do branco.
            Do mesmo ano, a obra “Cuidados” mostra a atenção do casal com a criança num mundo poético noturno estrelado e esperançoso. Esta obra traduz o amor entre pais e filho. No âmbito da construção compositiva, a área branca e as linhas de contorno ocupam um momento essencial da concretude criativa.
            Esses valores inerentes à sua produção são evidenciados com maior ênfase nas obras: “6”, de 2005, “A árvore da vida com um anjo rondeante”, de 2007, “Cabeça”, também de 2007 e “Desenho no desenho”, de 2008, cujas construções de planos e uso das cores reforçam um esquema próprio do artista ao lidar com a pintura e o grafismo, que emanam uma certa musicalidade, graças ao ritmo de suas pinceladas.
            Na obra “Harpia”, de 2008, Nestor enfoca o poder maléfico da figura alada. Esta é raptadora e atormentadora. Simboliza o vício e as paixões obcecantes. Nesta obra, o artista parece confluir toda a sua sabedoria expressiva num só “instante”: cores, formas, composição e “simplicidade”. A simplicidade como força expressiva é, sem dúvida, a sua maior marca. É a virtude inefável de um poeta artista.
            Para ilustrar a sua obra, recorro ao poema ³ do artista mineiro Fernando Pacheco:

            Eu peguei o vermelho
            e pintei de amarelo.

            Eu peguei o azul
            e pintei de preto.

            Eu peguei o cobalto
            e pintei de cádmio.

            Eu peguei minha cara
            e pintei de espelho.

            Assim vejo as obras de Nestor Lampros: são “um sonho repleto de significação humana”.



                                                                                           Paulo Cheida Sans


Referências Bibliográficas:

(1)  BACHELARD, Gaston. A chama de uma vela. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1989, p.48.
(2)  SANS, Paulo Cheida. Karel Appel, o artista que pintava como um bárbaro. Revista Olho Latino nº 7, maio 2006. Disponível: http://www.olholatino.com.br/revista/arquivo/2006/mai/8/karel.htm
Acesso: 27 de dezembro de 2008.
(3)  PACHECO, Fernando. Fernando Pacheco. Belo Horizonte: C/Arte, 2005, p. 09.

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