segunda-feira, 23 de abril de 2012

À MILANESA



             O que sentiu foi um grande empurrão, caindo dos lados da prisão, num lugar amargurado e de penas. Cheiro de carne cortada e moída. Cheiro de morte e putrefação, no chão sangrento.
          
            Seus olhos brilhantes sabiam onde não deveria estar. Mas estava ali. Só com  o gosto de sangue na boca, respingando para todos os lados, provocados por aqueles homens que o viam e riam, riam, riam. Num cercado, e pronto a experimentar algo mais indefinido e previsível- a morte. Calado permanecia, porque haveria algo pior  a se materializar, ainda ali, para ele.
         
Sem dizer nada, pois não sabia, só ouvia o escárnio daqueles homens fortes vestidos de azul-lilás por causa do sangue.
        
  Os brilhantes olhos foram herdados de sua mãe e o pelo macio recendia ao mesmo cheiro dela; pelo macio e branco que vinha decisivamente de sua mãe e dela se lembrava com ternura, deitada num pasto verde.  Por detrás, as colinas com um riacho de águas claras a limpar a face sem rugas.
               
 Ampliada agora a visão, pousou seus olhos na pior hora que se aproximava. A hora do abate.
                
Mas o ideal era aquilo que trazia em si mesmo. O mesmo contorno das orelhas macias como plumagem. Onde estaria se não estivesse ali? Na sua inocência  fazia a pergunta para além de toda a hereditariedade, para além  da vida e da morte, dele mesmo, onde carregava em si as marcas indeléveis da presença de outros e da distância na memória tão fresca e leve como dos pássaros.
             
 Mas não poderia fugir como um pássaro da perigosa via de existir, pois era um cordeiro.
                
Os homens se amontoavam e soltavam imprecações e escarravam em seu rosto tão branco e cândido. Sem motivos. Talvez fosse o mistério humano dissolvido na maldade.
                
Hans Splits, o chefe da equipe do abatedouro, para demonstrar o seu poder de homem superior pulou o cercadinho já apertado e, violentamente, com um empurrão, deixou o pobre animal mais confuso  do que estava.
              
 Com um repuxo violento, tentou virar a cabeça  do pequeno animal e, com a segurança que só um homem poderia ter à frente dos seus subalternos ele  de  sapatos imundos depois de tantas mortes,  escorregou e caiu.
               
 Estranho... Hans, de joelhos, teve que mirar o cordeiro nos olhos e a seguir um grito agudo veio não se soube  de onde para reduzir a distância entre homem e animal. Nada pôde fazer para mitigar o grito, e nem apertando as mãos contra os ouvidos o fizeram mais diferente e menos bestial.
              
             Logo refeito, saiu do cercado. Dentro dele já não era um ser vivo que podia sentir e sim um monte de carne pronta para o corte.
                
As especulações sobre o grito não foram sequer pronunciadas no abatedouro, mas sim a coerência de que tudo caminhava certo e absoluto como sempre.
               
Hans então caminhava para o final do expediente com um embrulho debaixo do braço. De papel celofane como qualquer outro.  Carregava, também, a sua fome e a certeza de que iria ser saciada em breve.
               
Pensava em sua mulher e a alquimia que ela ― e somente ela ― conhecia  na cozinha. Rito  do qual ele faria parte mais tarde como apreciador; o pacote era de carne: a melhor fatia que pôde tirar da melhor presa abatida

 Em casa, deixou sua mulher beijá-lo detidamente. Depois de lhe entregar a carne,  foi contando os passos para o banheiro. Ele sabia que sua mulher iria fazer seu prato favorito: bife à milanesa.
              
 A água, que em outros dias parecia tépida e relaxante, parecia agora mais um banho de adagas em sua pele branca. A água, mais clara que a de um córrego,  parecia sangue. Hans esfregava as mãos e pensava de onde poderia ter vindo semelhante som bestial, ouvido por todos lá no trabalho. E se lembrava dos olhos do pequeno animal chorando.
              
Mas logo que a última gota caiu e o corpo parou de se misturar às lembranças ele se enxugou e se vestiu rapidamente,  pela fome que tinha.
             
Na cozinha sentou-se à mesa e reparou numa coisa que não pode saber bem ao certo, o que era aquilo bem à sua frente: talvez uma sopa...?
            
 Mas havia algo mais do que estranho naquilo tudo. Uma coisa curiosa, pois pensou que Elisa lhe tinha dito que faria uma milanesa. Havia até um garfo ao lado do prato. Bem, que assim fosse. Sua mulher era uma excelente cozinheira e tudo a ela podia ser perdoado, pois ele a amava.  Então, com o garfo, provou do caldo. Horrível: era uma sopa sim, mas agridoce como se fora feita de lágrimas presentes na ausência do ente vivo que as derramara.
            
 Suspendeu, então, o enorme e único pedaço de carne no meio do prato  e ouviu outra vez o grito; vinha do naco de carne, agora, sem os olhos nem corpo, mas chorava ainda copiosamente por alívio e pela esperança. Esperança que o pequeno cordeiro conheceu um dia e que existia em algum outro lugar onde mãe e filho e todos os antepassados, juntos com outros de sua espécie,  desfrutavam as colinas verdejantes, na foz de um grande rio que banhava as pradarias e as sombras calmas onde só havia descanso e paz. Lá viveriam junto às flores que  podiam amar sem temor ou desculpas, à distância da dor ou da morte. Só mãe e filho, sem mais tristeza, se reencontravam,  porque as primeiras coisas haviam, certamente,  passado.