sábado, 11 de julho de 2009

COMO UM JEREMIAS

Estou cheio. Quero a direção dos meus sentidos. Tudo é opaco, quando não mudo. Estou presente na ausência dos mesmos que me veem e que podem me tirar do poço de águas salgadas.

Mas ninguém me tira. Tenho que chorar amanhã. Tenho que viver hoje, sem contudo, saber aonde posso rir de mim.

Rir: eis o misterioso plano de conservar a lucidez. Estou caído no chão emporcalhado. À deriva nesse buraco onde me encontro. Estou sozinho, com a solidão, na sua presença, m fazendo ver que não sou mais humano.

Tudo em volta é escuridão. Sempre que lembro de onde vim permaneço calado...

Olha, outra vez eles tentam me achar. Se me descobrirem estou frito...

Um pirilampo caminha. Não são tochas para algum monstro de Frankenstein. Sou eu mesmo, José da Silva. Com a minha mão dormente e doente. Minhas pernas que corriam e afrontavam os deuses. Estou só e minha solidão atroz se mancomuna comigo.

Tenho que me mexer um pouco. O frio incomoda. O barro, também. Estou mais calado que Jeremias, o profeta. Combinamos, só, no choro. Estou chorando um pouco...

Olha: mais vaga-lumes. Eles querem fazer um show. Bem nessa hora. Minha cabeça dói. Minhas mãos latejam. Eles voam para outro lado. São seis, sete, oito... - que balé legal. São artistas e eu, o espectador.

- Onde você viu o homem?

- Acho quem foi para lá...

Silêncio. Eles falam. São dois e me procuram. Acho que além de fachos de luz têm eles armas. Querem matar quem invadiu a escola. Meu Deus, me salve. Só quis dormir um pouco. Estava perdido. Não sabia em que lugar estava. Estou, ainda, perdido, dentro desse buraco. Sorte que o mato e essa árvore me fecha para eles... daí, como entrei, pulando a cerca, pulei de volta para correr, para correr. Não sabia para onde... A lua não estava no céu, nem as estrelas consigo ver. Depois cachorros latindo. Seus vagabundos! Me delatando!

Voei para dentro desse buraco. Como um pássaro sem asas. Como um cervo que perdeu, de repente, as pernas...

Queria ver os olhos de minha mãe. O sorriso de Rita. Ela era bonita. Mas soube que eu fui internado- daí foi o terror: eu dentro do sanatório. Não aguentei: fugi!

Estava lá no sanatório mais perdido que um goleiro no pênalti... Nunca agüentei ficar preso. Meu pai me deixava, às vezes, quando eu era pequeno, preso no meu quarto, quando não fazia as lições. Era um terror. Portas e janelas trancadas. Eu dentro de mim, que lançava o de dentro para mais ficar dentro de mim...

- Você tem certeza que era um só?

- Claro e deve estar por aqui...

Queria não pensar mais. Só chorar. Queria que os homens fossem mais fáceis de concordar que um cara nascido longe, sem saber aonde estava pudesse fazê - los entender que estava só e perdido. Mais perdido que um personagem do Plínio Marcos, numa noite dessas...

Silêncio... e se chamassem os policiais? Estava frito. Acho que eles querem é acabar com o problema deles por aqui mesmo. E eu era o problema. Uma arma, um tiro. Pronto!

Eles não vão chamar. Querem resolver com um tiro na minha cabeça. E se finni...: tudo resolvido.

Tinha até esquecido essa bíblia que tinha na calça. Pequena. Tinha letras muito pequenas, não conseguia ler sem óculos, que perdi quando saltei o muro do sanatório. Perdi, também, os chinelos. Meus pés estavam doendo. Estava em carne viva. Então tive um insight: se eu jogasse para frente a pequena bíblia eles, meus caçadores iriam tentar ir até onde estivesse a bíblia; e, aí, então, poderia me arrastar para o outro lado sem que eles me visse, já que estava uma noite negra como breu...

Fiz isso: joguei com todas as minhas forças o pequeno livro, mas antes dei um beijinho na sua capa azul. Para dar sorte...

- Olha, Romão, ali... deve ser o tal!

- É, lá!...

Segui o buraco na direção contrária, me arrastando com as calças imundas. Mas isso não era nada perto da sensação daquelas vozes ficando para trás. Só me virei outra vez para ver a luminosidade dos pirilampos que iluminavam o céu e a terra, o lugar onde estivera, sem estrelas, de onde escapei. De onde fuji.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A DOENÇA -QUADRO DE NESTOR LAMPROS

A DOENÇA E A SAÚDE

Como é estar-se doente? É o avesso a doçura, do avesso da estabilidade de se estar livre de enfermidades. Mas esta gripe tem o seu lado positivo, acho. É que ela me abre a possibilidade de entrever um outro mundo, não exatamente com os olhos da saúde, mas sim, da do doente. E como é estes olhares que focalizam o interior avariado, o corpo febril, a dor nos músculos. A voz desterrada? É uma visão quase sempre multifocal, enquanto que a nossa, normal, é parcial. Devendo ver o mundo desvendado, focalizo os olhos lacrimejantes e esboço um sorriso. A espera de que tudo pudesse acontecer, do lado escuro, do outro lado. Mas mais para lá do discurso que invade o coração e fica. Nietzsche sabia disso quando afirmava que o outro lado, o lado da doença, era um porção a ser estudada. E não simplesmente jogada na vala comum dos remédios e das consultas aos médicos. Uma porção do corpo está arruinado. Pesar vale ,ainda, como meio de sobrevivência ao corpo estiolado. Dores que surgem pelos poros a acontecem na medida em que o corpo produz um campo fértil de para a sua doença. Culpa do corpo, da mente, de nós mesmos. Se não nos purgássemos estaríamos em bons lençóis. Mas não. Acontece que vemos a doença como inimiga. São Francisco não chamava a morte de sua Irmã? E quanto mais a doença? E quanto mais os enfermos que não sabem, que são enfermos, mas doentes, da cabeça, dos membros, ou mesmo dos bolsos. Eis a pior doença. Aquela que ataca os nervos de quem não é filantropo, mas avaro, até os ossos.

***
O câncer tem sua peculiaridade. A fraqueza do câncer é a tomada de resolução em orientar a vida pelos caminhos do meio. Podem ser desertos, mas é a única saída. A que escolhe para o corpo a saúde e não a dor. Porque a dor- dói. E ninguém quer estar à sua mercê.

Supomos que todos irão morrer, mas é um só o cigarro. E depois desse outro, e outro, e outro, etc. O infinito dos cigarros põem termo à sua vida.

Comer frituras, tomar refrigerantes, ter uma dieta desagradável inquieta o coração e diverte a fadiga mental, a sexual e mesmo moral. Ou você não acha que nos libertamos do câncer quando temos a s rédeas de nossa vida em nosso coração?

Mas e as causas emocionais e as psíquicas, não valem? E a dor coletiva, não vale?

Claro que sim. Por que o mundo se assemelha a um corpo, visto do espaço, invadido por cânceres ( cidades humanas que não querem reconhecer-se como tal) A posição humana de querer controlar as vias econômicas sopra o caos na vida de quem nada sabe sobre caos/ordem/produção/lucro. Têm em mente apenas a côdea do pão que não foi dado. A água que veio mais macilenta. A dor nos pés sem sapatos...

A dor maior é ver que numa coletividade de pequenos meninos e meninas, tal como disse Saint - Exupéry, ao observar um comboio de imigrantes polacos pesadamente adormecidos: “ São os pequenos Mozarts que são mortos pelas engrenagens humanas...”

Enfim, tomados pelo desespero de olhos empapuçados o que leva consigo o câncer morre para que suas cinzas em forma de interrogação, faça na morte o que não fez em vida: a de inquirir do por que de tudo isso, meu irmão, minha irmã.

( alguns pensamentos nestorianos, etc...)