A Cléo entra
cantando no cartório. Cumprimenta-nos, sorrindo. Ela é a funcionária da
limpeza. Todo dia passa à mesma hora, recolhendo nossos cestos lotados do lixo
do dia: certidões incorretas, erros de digitação, documentos caducados. Papéis
inúteis. A Cléo vai de mesa em mesa, esvaziando o lixo em grandes sacos pretos.
Vai brincando com todos, faz piada com os cestos mais cheios: “errou muito
hoje, hein?” nos lembra do meio ambiente: “Assim, ‘cês’ tão matando árvore!
Quanto papel!”. Vai embora cantarolando outra canção. Todo dia é o mesmo bom
humor.
Enquanto isso,
em nossas mesas, resmungamos contra a falta de sorte: o aumento que não veio, a
nota baixa dos filhos na escola, o cheque especial estourado. Reclamações até
jutas, ninguém está resmungando por nada, mas a Cléo me faz lembrar um episódio
ocorrido em Caraguatatuba, no carnaval de 2003.
Era
uma daquelas situações fundo do poço, quando a gente pensa que pra afundar
mais, só cavando. Eu olhava o mar e o mar me olhava de volta, imperturbável.
Uma
mulher passou por mim. Uma mendiga, suja, usando camiseta de duas eleições
passadas, o cabelo duro de piolho sob um boné ensebado. Arrastava uma vassoura
velha e uma sacola plástica onde recolhia latinhas vazias de alumínio.
Ela parou
poucos metros à minha frente, apanhou uma latinha, lavou-a, encheu-a com água
do mar, para depois despejá-la sobre si, refrescando-se. A mulher inspirou profundamente, fitando o
horizonte. Então bateu as mãos no peito e exclamou; “Ê, vida boa!” E se foi,
caminhando sem pressa, arrastando a vassoura e a sacola à beira d’água.
Esse é o tipo de cena que não deixa ninguém em
paz, embora devesse. Aquela maltrapilha, que recolhia latas para poder comer,
fitava um mar diferente do meu. Minhas ondas eram indiferentes. As dela,
sorriam.
Quando
vejo a Cléo cantando e rindo enquanto recolhe o lixo do cartório, lembro da
catadora de latinhas, tão menos mendiga que eu, que nós, que muitos que não
recordam de Jesus ensinando a dar a "César o que é de César e a Deus o que é de Deus".
A cada dia, o
bom humor da Cléo e o episódio da mendiga me lembram o quanto estamos esquecidos
de dar a Deus o que é de Deus. A sermos mais reconhecidos pela benção da saúde.
Pelo trabalho que porá o pão à mesa. Ou simplesmente pela benção da vida,
porque a residência da vida é a mesma moradia da esperança .
Por isso, a Cléo
sorri, esperançosa e reconhecida. Por isso, a maltrapilha nos supera e ambas nos ultrapassam, menos preocupadas
com o que é de César e mais perto do que é de Deus.
Yndiara Rosa Macedo Isejima Lampros -06/01/2011
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