quinta-feira, 16 de junho de 2011

FALHA NO SISTEMA

Era um dia comum. Quinto dia útil, dia de pagamento. Os bancos estavam cheios da mesma história: gente nas filas para secarem os caixas eletrônicos.


Aparecida era uma das que aguardava, no fim da fila. Ia sacar a aposentadoria da mãe doente, era sua procuradora. A mãe tinha um problema raro, congênito, mas que perversamente escolhera a velhice para se manifestar, perverso mal que optou pelo tempo em que não há mais tempo. Os remédios eram caros. Todo o benefício recebido pela mãe de Aparecida ficava na farmácia.


A mulher chegou ao caixa eletrônico. Mecanicamente introduziu o cartão, seguindo o fluxo da rotina de sempre, da mesmice. Aguardou pelo mesmo, recebeu a novidade: a tela informou que a conta estava zerada. Aparecida franziu o cenho. Retirou o cartão, repetiu todo o procedimento. Só podia ser uma falha do sistema. A tela reacendeu, mostrando o mesmo saldo: R$0,00.


Aparecida entrou no banco, falou com um funcionário que não sabia como resolver o caso. Passou para o gerente pessoal da correntista. Aguardou esperançosa, só para descobrir que naquele estabelecimento “gerente pessoal de conta” era um nome bonito para um funcionário que resolvia pepinos de gerenciamento ganhando salário de caixa.


“Por favor, não consta depósito da aposentadoria da minha mãe. Deve ser uma falha do sistema.”. O gerente da conta digitou números, mexeu em teclas, em papéis, consultou superiores. Telefonou.


“É mesmo falha do sistema. Mas não do nosso. O problema é na fonte pagadora. A senhora tem que procurar a empresa em que sua mãe se aposentou.”


Aparecida sentiu aquele frio na barriga que antecede ao desespero. Como ia fazer sem os vencimentos da mãe? Como pagar a conta da farmácia? A mãe dependia daquilo para viver, literalmente!


O antigo trabalho da aposentada ficava longe. Aparecida tomou dois trens do metrô e mais um ônibus. Ao chegar, procurou pelo departamento pessoal.


“ O D.P. fecha ás dezesseis horas, senhora, agora só amanhã.”


Aparecida voltou no dia seguinte cedinho. Madrugou inutilmente, pois o “D.P.” só abria às dez. Pelo menos foi a primeira a ser atendida. Explicou o caso, como no banco.


“Então, não depositaram a aposentadoria da minha mãe... deve ser falha no sistema.”


O funcionário do DP foi atencioso e correto de acordo com as novas regras da ISO-não-sei-quantos-mil. Com eficiência, buscou as informações e em cerca de duas horas, trouxe uma resposta..


“ Certamente foi uma falha do sistema, senhora, mas não do nosso. A senhora tem que procurar o departamento financeiro.”


“ Em que andar fica?”


“ No quinto andar. Mas hoje ele só abre de manhã e já é meio dia. Agora só na segunda- feira”


O fim de semana foi opressivo. Aparecida não contou do problema á mãe para não correr o risco de uma alta de pressão que agravaria o já debilitado quadro de saúde da velhinha. As cartelas de remédio chegavam ao final e infelizmente não havia pílula contra os entraves burocráticos.


Na segunda feira, Aparecida foi ao departamento financeiro. Novo atendimento atencioso onde, educadamente lhe disseram:


“ É falha do sistema, sim. Mas é na Tesouraria.”


“Pelo amor de Deus, me digam que eles estão atendendo hoje...”


Estavam, sim. E após exaustiva consulta, foram taxativos.


“ Minha senhora,isso é um absurdo. O sistema da Previdência é um caos. O processo emperrou lá. Procure a Previdência.”


Aparecida foi á Previdência social. Pegou senha, esperou horas até que uma funcionária, que pouco sabia o que são isos-não-sei-quantas, lhe atendesse.


“ Os papéis que a senhora quer já foram enviados até a empresa. Volte lá. Não houve falha de sistema. È muito serviço pra pouca gente. O sistema não ajuda nem a gente, minha senhora.”


E lá retornou Aparecida ao financeiro da empresa que a encaminhou à tesouraria, depois de volta ao DP, onde foi atendida por uma funcionária, correta mas glacial.


“ Já recebemos a documentação, mas o prazo para o trâmite é de cinco dias. Dias úteis, entenda.”


“Minha mãe é doente, está sem remédio, por favor, não tem nenhum outro meio? Nenhum jeito?”


“ Sinto muito senhora . Nós fazemos tudo certinho, como manda o sistema. Procure um posto de saúde”


Aparecida foi até o posto de saúde de seu bairro. Um rapaz que usava óculos de grossas lentes consultou computadores e pelo menos seis funcionários.


“ Nós até temos o remédio, mas só chega em dez dias.”


“ Rapaz, minha mãe vai morrer. Ela está sem salário, sem remédio! O que eu vou fazer?!”


“ Nós seguimos um sistema, senhora. Procure um advogado.”


Pálida, Aparecida entrou no primeiro escritório de advocacia que encontrou. Estava quase tão macilenta quanto a mãe doente, que tomava pastilhas de confeito, sem saber que a medicação acabara. O advogado olhou os papéis, analisou o caso.


“ Podemos entrar com um pedido de liminar. Em 72 horas da entrada do processo sai uma decisão, até pegarmos um ofício para a empregadora deve levar no máximo uns cinco dias...


Anestesiada por cansaço e desalento, Aparecida voltou para casa. O sistema parecia se mover só a cada cinco ou dez dias, nada havia a fazer.


No sétimo dia útil após a última reclamação de Aparecida, finalmente a aposentadoria foi depositada. Sem juros nem correção. O sistema não tem rosto, corpo, nome, nem endereço. Assim, não paga o preço de suas falhas.


Aparecida foi ao banco retirar o dinheiro. Dali, foi direto à funerária, acertar o enterro da mãe, que falecera dias antes. No óbito, constou a causa mortis:


“falha no sistema respiratório”.


CONTO DE YNDIARA ROSA MACEDO



quarta-feira, 15 de junho de 2011

DEPOIS DO SÉTIMO

Perdi meu endereço na chuva. Ela levou e se dirigiu a uma sarjeta. Desconhecendo meu paradeiro aluguei uma ponte para dormirmos, eu e as treze perguntas. Treze perguntas que me fizeram ao se fazerem, homens. Minha atenção continuou além do viaduto onde permanecia atento os quatro carros de cor vermelha que me despiram. Rondilhei minha perna e sobre ela erigi um mundo.


Nele compunha-se de cores, não de ruas, pernas de mulheres absolutas. Tiritar de frio-não. Roubar as estranhas balas da surdina era o método anunciado para romper com o gatilho dos sons:


-Rompi com os desastres, devo reconduzir as massas ao templo? Me perguntava um dos treze, um anão mais muito alto pela sua ternura.


-Não. Recorra aos escapamentos dos carros e afogue um ronco do décimo primeiro, disse-lhe.


-Como fazer?


Apontei para as ternuras dos santos dias nenhum. Inclusive quem se esqueceu dos santos dias em comum.






Minha música tornada em espanto continuava a namorar as agruras do outono. Era por lá sempre primavera, a primeira.


Nós homens que habitavam o espaço de minhas ternuras não se pedia mensagens ou tempo. Tudo se media conforme o lado que anoitecia. Em paridade com os minutos, todos meus minutos eram para a mulher que me sentia. E ela não usava o corpo para permanecer. Contrária a mim mesmo, poderia ir a qualquer lugar.


Em torno do meu universo os óculos eram o ar que respiro. Meus trajes cobriam meus azulejos possantes e minha cara estava para sempre acima da noite a ser barbeado.


Todas as pinturas rupestres do meu conhecimento anunciavam quatro pesos e quatro medidas. Platão vinha almoçar comigo e Descartes era descartado no primeiro raiozinho fraco da minha procura. Kierkegaard roubava meus talheres forrados de nomes bruscos. Nietzsche sempre curava meus cabelos com uma voz reconhecido pelos milhares de documentos sem Kafka.


Sinto que minha casa era demais. E os treze homens que me acompanhavam dedicaram cada qual a uma tortura particular. Eram sempre treze e por treze anos uma tulipa brava veio nascer nas minhas rugas.


E sem saber para que ficar atento pintei com meus olhos a curva dos dias.


Fundando lamentos abafados e coldres de vinho compostos de um nojo vulgar, mereci de terno e capuz o vento, assim, de palavras, sem covardias.


Navegando sem pretensões e músicas sem retorno. Minhas flechas cortavam e cravaram e tudo era bom. O oitavo dia.